“Em uma guerra, você mata gente que não conhece, gente que nunca lhe fez mal”
Nasceu em 6 de julho de 1919, no bairro do Brás, na cidade de São Paulo. Filho de italianos, não tem lembrança alguma do pai, que morreu quando ele tinha um ano e meio de idade. Passou a infância “jogando bola na rua”. Palmeirense, chegou a treinar no clube. “Marcava muitos gols.” Mas a infância foi curta, porque com 12 anos de idade já trabalhava para ajudar a família, engraxando sapatos.
Gratagliano freqüentou a escola por apenas um dia, em toda a sua vida. Ele foi expulso da escola aos oito anos de idade. “Puxei o cavanhaque do professor quando ele me repreendeu por falta de atenção na aula, ele então me jogou na rua e disse para nunca mais voltar lá”, relata. “Eu não voltei." Foi alfabetizado pelo irmão engenheiro e deve sua formação cultural à leitura de livros, jornais e revistas. “Aprendo rápido”, diz. A mulher, Maria, corrobora a afirmação do marido: “Eu fiz até a quarta série do primário e sei bem menos coisas do que ele”, e elogia: “Vicente é esperto, inteligente.”
Ele vendeu peixes em uma feira livre dos 14 aos 21 anos, quando foi convocado pelo Exército. Em 2 de julho de 1944, embarcou em um navio a caminho da Itália. Esse foi o primeiro contingente de soldados, que somariam depois 25 mil brasileiros na Europa, todos da Primeira Divisão Expedicionária, que juntou-se às forças norte-americanas. Gratagliano integrava o 1º pelotão, da 1ª companhia, do 1º batalhão do 6º regimento.
Para o rapaz que antes nunca saíra do País, a viagem de 14 dias foi penosa. “Nos primeiros dias, vomitava a toda hora”. O desembarque, em Nápoles, sul da Itália, ocorreu ao anoitecer, e a primeira noite foi passada ao relento. Após treinamento de dois meses, foi convidado a fazer seu testamento. “O tenente chegou e perguntou para quem deveria enviar meus pertences e proventos, caso eu morresse em combate.” Vicente indicou a mãe. “Esse foi o primeiro choque; antes a guerra parecia algo distante, mas nesse dia ficou claro o risco que corria.”
Medo e valentia - O medo começava a ganhar forma, mas o orgulho impedia que o sentimento fosse exposto entre os soldados. “Todos morriam de medo, mas ao mesmo tempo a gente tentava mostrar valentia diante dos companheiros, para não parecer fraco”, conta. O frio era outro problema. Acostumados com o clima tropical, nem as pesadas roupas cedidas pelos norte-americanos os deixavam suficientemente aquecidos. “Usávamos duas meias, mas os pés estavam sempre gelados.”
Os pés de Gratagliano só recebiam tratamento especial quando visitava Mafalda, uma italiana pela qual o soldado paulista se encantou. Sempre que conseguia uma folga, ele ia para Lucca, cidade em que morava a moça, para quem levava sabonetes e chocolates. “Ela esquentava tijolos e colocava nos meus pés”, lembra. “Mafalda era linda, e também me elogiava, dizendo que eu era molto bello.”
Batismo de fogo - A primeira experiência de Gratagliano em combate, quando teve que realmente disparar uma arma contra os inimigos alemães ocorreu nos arredores da cidade de Bolonha, durante uma madrugada de fevereiro de 1945. Gratagliano era o sentinela encarregado da ronda das 23h à 1h. Nevava bastante, e pouco se via à distância. Prevendo esse problema, durante o dia, um engenhoso companheiro, Armando Ferreira, preparara uma armadilha que acionaria um dispositivo sinalizador (que iluminaria a área durante um minuto), caso alguém esbarrasse em uma linha colocada próxima à trincheira.
Ocorreu o que os brasileiros temiam, mas esperavam cedo ou tarde: um grupo de alemães se aproximou, acionando o mecanismo preparado por Ferreira. Apareceram quatro alemães, todos de capa branca - para se camuflar na neve. Apavorado, mas consciente da sua missão naquele momento, Gratagliano disparou 20 tiros em direção aos inimigos enquanto a luz os iluminou, e em seguida recarregou a arma e disparou mais 20 tiros.
O soldado brasileiro ficou sabendo depois que dois alemães foram mortos na ocasião. Como prêmio por sua atuação no episódio, ganhou oito dias de licença em Roma e uma medalha. Ele jamais fez as contas de quantos alemães tirou de combate. “Não quero saber, porque não me orgulho disso; em uma guerra, você mata gente que não conhece, gente que nunca lhe fez mal.”
Amigos - A guerra serviu também para fazer amigos. “Criamos laços fortes, porque passamos muitos maus bocados juntos”, diz. “Não me sentia satisfeito quando ficava longe dos companheiros: mesmo quando estava de folga, eu me preocupava com eles, e só ficava tranqüilo quando voltava para o front.” Até hoje um grupo de veteranos se encontra toda primeira quinta-feira mês, em um restaurante italiano de São Paulo. Jantam, relembram acertos e lamentam os erros estratégicos, falam mal da maioria dos oficiais que os comandara, bem das mulheres italianas que conheceram, reinventam algumas histórias.
Gratagliano fez ainda amigos entre os europeus. Ele treinava seus conhecimentos do idioma italiano conversando com os moradores das cidades por onde passava seu regimento. Gostava particularmente de brincar com Bruno, um garoto na época com quatro anos de idade. De volta à Itália em 1994, em uma excursão de ex-combatentes, reencontrou o menino, então um engenheiro de 54 anos.
Terminada a Segunda Grande Guerra, os ex-combatentes brasileiros receberam homenagens, desfilaram pelas ruas do Rio de Janeiro e São Paulo. “Mas fomos desmobilizados na Itália mesmo, porque Getúlio era contrário à FEB”, afirma.
Depois do final da guerra, voltou à vida de feirante até 1977. “Como a maioria dos recrutados, eu era pobre, e ainda sou.” Católico, aposentado, com dois filhos e quatro netos, já não espera muito do futuro. Pessimista, acredita que o século 21 será pior do que o 20. Aos jovens, aconselha: “Seja honesto, não se envolva com drogas, creia em Deus. Cada médico do hospital, nos últimos meses, sabia de suas histórias com detalhes. A preferida era a da medalha -quando foi premiado por ter matado dois alemães em uma engenhosa emboscada no meio da neve.
Mas ele não se orgulhava dos tiros e preferia não fazer as contas que quantas "vidas inimigas" tirara na guerra. Orgulhava-se, porém, do amor por uma italiana, que até hoje azeda a memória da família. Desde então dedicava-se a fazer casinhas de papelão para as crianças do bairro.
Quando delirava, já internado na UTI, reclamava do tamanho da trincheira em que havia sido colocado - "não vai caber os outros soldados", balbuciava. Morreu pensando na guerra, no hospital em São Paulo, aos 88 anos.
Folha de São Paulo
Estadão (Lúcia Camargo)
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