segunda-feira, 5 de junho de 2017

Paulo Gomide Leite um dos 111 goianos da Força Expedicionária Brasileira


Pracinha goiano Paulo Gomide Leite 89 anos, nome de guerra: Gomide, conta muito do que viveu no front de guerra na Itália, onde combateu os nazistas na tomada de Monte Castelo,em 21 de fevereiro de 1945.

Entre os goianos que foram convocados para a Segunda Guerra Mundial, servindo na Força Expedicionária Brasileira (FEB), na Itália, estava Paulo Gomide Leite. Nas páginas que seguem ele conta muito dessa saga, numa conversa descontraída com o editor Cezar Santos e o ex-governador Irapuan Costa Junior, colunista do Jornal Opção, amigo de longa data do entrevistado e um estudioso do tema.
Paulo Gomide lamenta os brancos na memória, mas num esforço traz à tona muita coisa do que viveu no teatro de guerra, histórias deliciosas, humanas, engraçadas, tristes, terríveis. Foram mais de 50 milhões de mortos nesta guerra, em que os países aliados combateram o chamado Eixo - Alemanha, Itália e Japão.
E como estamos em período eleitoral, o pracinha Paulo Gomide diz que é um combatente também pela democracia, informando que faz questão de votar apesar de não ser mais obrigado a fazê-lo. Seus votos: Iris e Serra — “Não suporto essa Dilma, que transpira falsidade”. A entrevista foi concedida na tarde de terça-feira, 27, na residência dele, no Setor Oeste, em Goiânia.
Irapuan Costa Junior — Quando o sr. foi convocado para a Segunda Guerra Mundial?
Fui convocado dia 8 de novembro de 1942. Recebi a carta de convocação nessa data. Eu era da classe de 1921, e todos dessa classe foram convocados. Todos que tínhamos 21 anos fomos convocados. Morava em Goiânia, recebi a carta: “Notifico-vos que fostes convocado para servir no Exército brasileiro. Deveis apresentar-vos até o dia 15 de novembro”... Mandavam apresentar no quartel de Ipameri. Começou a preparação para a Força Expedicionária, na época chamado Corpo Expedicionário, com a convocação, primeiro, da classe de 1921. O 6º Batalhão de Caçadores de Ipameri fornecia soldados para as unidades da Força Expedicionária Brasileira (FEB). No primeiro contingente escalado em Ipameri para o Regimento Sampaio, 80 homens, eu estava no meio. Fui para o Rio nesse contingente e fui incorporado ao Regimento Sampaio, no 1º Regimento de Infantaria.
Cezar Santos — Quantos dias de viagem para a Itália?
Foram 16 dias. Viajamos às 6 horas da tarde. Dia claro ainda tínhamos de trancar o beliche, não podíamos acender luz, havia uma iluminação vermelha, até as 6 horas da manhã do dia seguinte. Só depois de o dia clarear é que podíamos sair do beliche. Foram 16 dias nisso.
Cezar Santos — O sr. chegou à Itália que dia?
Chegamos à Baia de Nápoles no dia 6 de outubro de 1944. Desembarcamos do navio diretamente para uma flotilha imensa de barcaças que comportavam 400 soldados cada uma. Nessa flotilha fomos para Livorno, onde estava o campo de treinamento. Viajamos em torno de 16 horas na barcaça. Foi uma viagem terrível, a barcaça só faltava virar 180 graus. Todo mundo enjoou, eu me lembro que segurando no beliche, o sargento Sobrinho, do meu lado, já não tinha força para levantar e vomitava na caneca de tomar café. Nesse momento eu quase vomitei também. Resisti bravamente (risos...). Desembarcamos em Livorno. Só para mostrar como as coisas são, depois da guerra, chegando a Goiânia, peguei o avião para ir a Patos de Minas, certo de que era o tal, imune a enjoos, e quase me acabei de vomitar no avião daqui para lá (risos..) Ficamos em treinamento em Livorno até princípio de novembro, quando entramos em combate.
Irapuan Costa Junior — Seu batismo de fogo se deu que dia?
Meu batismo de fogo foi no dia 21 de novembro de 1944. Entramos em combate neste dia. Mas tivemos a maior escaramuça no dia 12 de dezembro, que foi o segundo ataque a Monte Castelo. O primeiro ataque a Monte Castelo tinha sido dia 29 de novembro, mas meu batalhão não participou. No dia 12 de dezembro, sim, entramos em combate. Nessa batalha tivemos de recuar, numa ação que depois foi condenada por vários oficiais, porque tivemos muito pouco apoio de artilharia e nenhum apoio de aviação. O que não aconteceu no dia 21 de fevereiro de 1945, quando teve muita aviação e muita artilharia e conquistamos Monte Castelo.
Irapuan Costa Junior — O sr. sentiu medo na trincheira?
Lógico que senti medo, na guerra todos têm o sentimento de medo. Aliás, tivemos instrução bem clara sobre isso. Um oficial falava não existe esse negócio de dizer que não tem medo, medo é consequência do instinto de sobrevivência. Se você está se sentindo ameaçado, você tem medo. Na guerra, o importante é controlar o medo, não pode deixar o medo tomar conta de você. E foi o que nós vimos na prática, que alguns soldados não conseguiam controlar esse medo. Mas o oficial comandante deles, e eu vi vários casos, recebiam isso como coisa natural, entravam em contato com o comandante imediato e remanejavam esses soldados para postos de comando atrás, na retaguarda. Isso porque esses soldados não tinham condições de ficar na linha de combate. O importante era o controle desse medo. Eu, felizmente, toda a vida consegui controlar isso, mesmo vendo granada cair perto de mim. Nunca entrei em pânico, nunca.
Cezar Santos — Nessa batalha em que vocês tiveram de recuar, houve muitas baixas, morreram muitos brasileiros?
Segundo soubemos, só no meu batalhão foram mais de 200 baixas, entre mortos e feridos. Eram três batalhões constituindo o regimento de ataque no dia 12 de dezembro. O Batalhão do Regimento Sampaio, que era o meu, o 2º. O Batalhão do 11º RI e o do 6º RI. Os três batalhões compondo um regimento de ataque. Mas como disse, sem nenhum apoio de aviação e pouquíssimo apoio de artilharia. Foi um fracasso. Pouco depois das 5 horas da manhã começamos a nos deslocar em frente ao Monte, e às 8 e meia já estávamos recuando. O comando chegava à conclusão de que não iríamos ter sucesso no ataque. Foram duas horas e meia de inferno.
O bombardeio dos alemães em nossa direção foi intenso. Me lembro que o tenente Hugo Xavier Pinto Homem, nosso comandante, no momento de escolher nossa posição, numa encosta longa, tinha um raio de uns 200 metros para alojar nossa companhia. Ele definiu o local e começamos a cavar com picareta e pá de campanha, cada um cavando seu fox holler (buraco que o soldado cava na área de combate para se colocar em posição de tiro com relativa segurança), seu abrigo individual. Quando já estávamos na metade, o tenente chega e diz vamos mudar, vamos mais para a direita. Saímos todos xingando, porque já estávamos na metade do trabalho e tivemos que recomeçar do zero. Fomos mais uns 200 metros para a direita, local que ele achou mais conveniente para colocar a companhia. Depois, quando recebemos a ordem de recuar, passamos pelo lugar onde teríamos ficado, e vimos que estava irreconhecível, era só crateras de granadas que tinham sido jogadas pelos alemães. Se tivéssemos permanecido ali, provavelmente a companhia toda teria sido dizimada. Ou seja, o tenente acertou em cheio quando determinou mudança da nossa posição. Nós o cumprimentamos.
Cezar Santos — Historiadores dizem que os 25 mil brasileiros que foram para a Itália nunca fizeram exercícios de combate como divisão, tampouco como regimento. Foi assim mesmo?
Não foram 25 mil, foram 30 mil soldados brasileiros para a Itália. Tivemos um treinamento, vamos dizer, pouco parecido com o que iríamos encontrar no teatro de guerra. Mas isso nós só veríamos depois. O armamento que tínhamos no Brasil foi considerado obsoleto. Quando chegamos à Itália, recebemos armamento moderno. Na minha função, dentro de grupo de combate, recebi uma metralhadora Tommy Gun (Thompson) com carregador de 30 tiros, calibre 45. Os demais soldados receberam fuzis Springfield, coisa que nunca tinha sido vista no Brasil. Nossos fuzis eram de 1908. Então na Itália tivemos um treinamento totalmente renovado diante das perspectivas que aguardávamos. A não ser a parte física, nada do que havíamos treinado no Brasil haveria de ser aproveitado lá. Foi tudo novo para nós.
Cezar Santos — Vocês treinaram com a força americana?
Não, o treinamento que fizemos foi com a oficialidade brasileira que havia estagiado no exército americano. Tudo o que eles aprenderam, a guerra moderna, transmitiram para nós. Acredito que não ficou nada a desejar nesse quesito.
Cezar Santos — Como foi a questão da comunicação dos brasileiros com os italianos? Era complicado?
Nunca tivemos problemas com os italianos, nunca. Pelo contrário, quando fizemos a ofensiva da primavera, em que a tropa avançou para o norte, um avanço meio avassalador, não tinha havido contato com os italianos naquela região, eles tinham uma ideia negativa sobre nós, porque os alemães, na recuada, diziam que nós éramos como bichos. Quando chegamos ao norte da Itália, os italianos da região viram que não tinha nada do que os alemães falavam sobre os brasileiros. E convivemos de maneira cordial, sem nenhum problema. Mas a imagem que antes eles tinham de nós, pintada pelos nazistas, era de selvagens, bárbaros. Conversei muito com italianos sobre isso. Eles me contavam como os alemães nos descreviam, era até engraçado, e eles comprovaram que não, que éramos iguais a eles, tínhamos afinidades. Interessante que não havia um lugar que não tivesse família com italiano radicado no Brasil. Isso nos aproximou.
Cezar Santos — O sr. se lembra de forma nítida de ter metralhado alemão, ter matado nazista?
Não. A única oportunidade que tive de atirar num inimigo, eu estava de sentinela avançada, numa posição alta, e recebi comunicado por telefone de que um espião, um prisioneiro, tinha fugido do quartel do comando e estava correndo para minha direção. E eu vi o cara correndo, cheguei a apontar a metralhadora, mas não atirei. Eu pensei ele vai cair na Segunda Companhia, mais à direita, e será preso, não vou atirar. E realmente o sujeito foi pego mais adiante. Foi essa a única oportunidade que tive de atirar diretamente num indivíduo. Não atirei e fiz bem. De resto, atirei à noite, de madrugada, no rumo dos alemães, de metralhadora, de morteiro, mas não em um alvo humano determinado.
Cezar Santos — O sr. viu companheiro morrendo, estrebuchando ao seu lado?
Sim, e até hoje me lembro da cena.
Cezar Santos — Sabia no nome dele?
Não sabia o nome porque não era da minha companhia. Ele tinha recebido estilhaço de uma granada na garganta. O pelotão de enfermeiros veio com a padiola para recolhê-lo. Vi que quando ele respirava, o sangue sai em esguicho pelo ferimento do lado esquerdo. Nunca me esqueci disso. E teve um colega, amicíssimo meu, o cabo Miguel Marotti Cabral, que a granada caiu no fox holler dele. Ele estava no fox holler, onde só cabe um soldado, e a granada caiu dentro. Só sobrou um pedacinho dele. O detalhe é que o cabo Marotti era o campeão de cartas da companhia. A noiva dele, Iracema, do Rio, lhe escrevia diariamente. Contei essa história para o Irapuan esses dias. Tinha um soldado pequenininho, em quem botamos o apelido de "Cinco liras" porque era a nota menorzinha, quadradinha. A gente falava Marotti, dá uma carta pro "Cinco liras" (risos). "Cinco liras" não recebia carta de ninguém, parecia um deserdado, e o Marotti recebia um montão de cartas. Pois bem, a granada dos alemães caiu dentro do fox holler do Marotti e só sobrou um pedacinho desse tamanho dele. Depois da guerra, no Rio de Janeiro, o tenente comandante tinha guardado as coisas dele, cartas, mala, e me chamou, 41, (meu número era 5041), vamos à casa da Iracema entregar as coisas do cabo Marotti. Eu falei não tenho coragem, tenente. Não fui. O tenente foi levar os pertences do Marotti, inclusive o amarrilho das cartas dela.
Cezar Santos — E deserção, houve deserção? O sr. ficou sabendo de algum brasileiro que fugiu da raia na Itália?
Lá comigo não. Mas você imagine, o Regimento Sampaio, que era o meu, tinha 6 mil homens. Quando recebemos ordem de prontidão para embarcar, mais de 20 dias antes, no dia do embarque, tivemos notícia de uma deserção. Ou seja, uma em 6 mil homens. E mesmo assim não sei se foi verdade.
Cezar Santos — O que mais o impressionou nesta participação na Segunda Guerra Mundial?
Foi o ensinamento dos superiores, de que quando se está na frente de batalha, tem de se preservar e ter foco no objetivo que está lá na frente, que é o inimigo. Mais nada. Você só deve pensar no que tem de fazer. A gente vira uma máquina. Quem não consegue isso e entra em estado de desespero incontrolável tem de voltar para a retaguarda. Era reconhecido como um estado normal, sem punição nem nada. Mas foram pouquíssimos casos assim.
Paulo Gomide Leite: “Não tenho traumas”
Foto: "O Popular"
Cezar Santos — E a tal de neurose de guerra, o trauma? Sabe-se de caso de ex-combatentes que ficam pirados. O sr. não sentiu nenhum trauma?
Tive nada.
Irapuan Costa Junior — O sr. só teve o trauma de audição (risos....)
Vim de lá com problema de audição no ouvido direito. Explodiu uma granada perto de mim, até hoje não sei como não fui atingido. Foi um ruído muito forte, a uns 6 metros de distância. Não estava esperando e não me protegi direito. O problema ficou muito tempo paralisado, mas de uns anos para cá começou a progredir, não só no ouvido direito, como também no esquerdo. Estou usando essas porcarias aqui por causa disso (mostra os aparelhos auditivos nos dois ouvidos).
Cezar Santos — O sr. teve namorada italiana lá?
Tive, tive, quem não teve (risos...). Inclusive disputei uma namorada com o major Sizeno Sarmento. Como era o nome dela? Tinha um baile, vinha o major e tirava a moça de mim. Daí a pouco eu ia lá e tirava ela do major. Tudo isso esportivamente. Quando ele veio em Goiânia, eu o lembrei desse episódio, ele deu boas risadas.
Cezar Santos — No final do baile o sr. ganhou a moça dele? Houve contato depois com ela?
(Risos...) Ficou na brincadeira, na lembrança dele e da minha. Não teve contato depois. Nós fomos para o norte da Itália. Mas em Piacenza eu arrumei uma namorada, Tina Zermani. Quando fomos para Nápoles, para voltar, ainda recebi duas cartas dela.
Cezar Santos — O sr. fez amigos italianos?
Sim, vários. Estudei italiano, comprei gramática, estudava o idioma. Fui com uns colegas a um convento, comprar vinho das freiras, e elas ficaram surpresas comigo, eu que não era descendente de italiano, conversando tão bem. Eu disse que estudava, comprei cartilhas. Eu falava bem o italiano.
Irapuan Costa Junior — O sr. falou em vinho, conte o episódio da adega na vila...
(risos...) Foi na Operação Primavera. Chegamos numa propriedade rural, um verdadeiro castelo, grã-fino, rico mobiliário. Os donos fugiram apavorados quando nós chegamos...
Cezar Santos — Eles fugiram por acharem que vocês eram alemães?

Nós tínhamos a imagem de bárbaros. Havia uma escada e eu fui o primeiro a subir. Fui batendo nos degraus com uma vassoura, por causa dos burn trapp (bombas que os alemães deixavam armadas), e senti o cheiro de álcool. Fui pelo cheiro. Entrei no aposento e vi que era uma adega, repleta de vinho. Estava de blusão, coloquei não sei quantas garrafas e desci. Tinha um berço embaixo, eu escondi as garrafas nele. O capitão veio revistar a tropa, tinha recebido um telegrama dando notícia do nascimento de sua filha, viu o berço e bateu nele entusiasmado, quando viu as garrafas. Que é isso aqui? Eu falei que eu que tinha colocado. E tive de contar onde era a adega (risos..). Todo mundo foi atrás. Imagine, aquele tanto de soldado, a companhia inteira. Duas horas depois, todo mundo estava bêbado.
Cezar Santos — Como era a relação com os americanos?
Nunca tivemos problemas com os americanos.
Irapuan Costa Junior — Como era divisão negra na força americana?
Na nossa força não havia divisão entre negros e brancos, era misturado. E no exército americano, os brancos não se misturavam com os negros. Tanto que havia a divisão negra, formada só com negros. O curioso é que os americanos brancos confraternizavam com o nossos negros, sem problema, mas não com os negros deles.
Cezar Santos — E a história de que os brasileiros receberam botas dos americanos, e essas botas eram muito grandes...
Não houve isso não, é folclore da guerra.
Irapuan Costa Junior — Mas se diz que os brasileiros inventaram colocar jornal dentro da bota...
Sim, isso é verdade, mas era para esquentar. Naquele frio danado, jornal esquenta, isso é verdade.
Irapuan Costa Junior — Também se diz que brasileiro inventou pegar os dois carregadores da metralhadora Thompson e passar fita isolante pra eles ficarem pregados. É verdade?
Não sei se isso é verdade, mesmo porque o carregador é único. Tira um para pôr o outro. Não sei como seria isso.
Irapuan Costa Junior — Pregando os dois, um fica pra cima e outro pra baixo. O sr. nunca viu isso lá?
Nunca vi isso. E olhe que éramos vários soldados cuja função exigia a metralhadora Tommy Gun. O carregador dela é de 30 tiros, calibre 45. Andávamos com sete carregadores, um na metralhadora e mais seis.
“Não sentíamos na pele a ação do governo na ditadura de Vargas”
Cezar Santos — Na questão política, vocês saíram do Brasil sob uma ditadura para combater um totalitarismo. Os soldados falavam sobre isso?
O que se chama hoje de ditadura de Getúlio Vargas, era um regime forte, mas não com a impetuosidade, digamos assim, do nazismo e do fascismo. Não sentíamos na pele a ação do governo. Era uma situação suave que tínhamos aqui.
Irapuan Costa Junior — Via gente com tendência ao comunismo?
Não vi isso. O universo nosso era muito restrito. A gente convivia com o pessoal da própria companhia. E mais ainda, convivíamos mais intimamente com o grupo de combate, uns 20 soldados. A relação era amistosa com os demais, mas não passava disso.
Cezar Santos — A expressão "a cobra vai fumar", vocês falavam disso? Como surgiu essa expressão?
Ninguém sabe de onde surgiu isso. O que tem é lenda, ninguém sabe exatamente de onde veio. Me lembro que quando cheguei ao Regimento Sampaio já tinha o distintivo a cobra fumando. Na Aeronáutica era o "senta a pua".
Cezar Santos — Na frente de combate a saudade de casa batia muito forte? Ficava doido para voltar?
Pensar pensava, mas a gente se virava na Itália.
Cezar Santos — O sr. conheceu o general Zenóbio [Euclydes Zenóbio da Costa, comandante da Infantaria brasileira na Segunda Guerra]?
Eu o vi uma vez em que ele fez revista à tropa. Ele era comandante da Infantaria. Não convivíamos com ele.
Irapuan Costa Junior — Conheceu o sargento Max Wolff [morto já quase no final da guerra, tinha o apelido de "rei dos patrulheiros", por sua habilidade nas patrulhas, missões de grupos pequenos para levantar informação sobre o terreno e o inimigo, fazer prisioneiros ou resgatar colegas feridos]?
O Max Wolff, do Paraná, né? Não conheci, ele era de outro batalhão. Tenho aqui, num dos jornais que guardo, uma citação de combate dele.
Cezar Santos — O sr. conheceu o Benvindo Belém, de Pindorama de Goiás (hoje Tocantins)?
Tenho vaga lembrança, porque meu contato era mais com os ex-combatentes aqui da capital. Com o pessoal do interior, pouquíssimas vezes tivemos contato. Já se passaram mais de 60 anos...
Cezar Santos — Em Belo Horizonte tem uma rua com o nome do Benvindo Belém. O sr. sabe se em Goiânia tem alguma rua em homenagem a algum pracinha?
Não sei...
Irapuan Costa Junior — Tem a Ademar Ferrugem, em Campinas.
O Ferrugem? 

Não me lembro se ele foi...
Irapuan Costa Junior — Sim, ele morreu na Itália. Pensei que ele fosse da FAB, mas não, era da FEB mesmo.

É.
Cezar Santos — Ao voltar da guerra o sr. foi trabalhar em quê?
Quando fui eu era funcionário da Companhia de Seguros Minas Brasil. O decreto do governo, a ditadura de Getúlio Vargas, dava ao convocado a opção de ter o soldo ou o salário da empresa onde trabalhava. O vencimento do soldado era uma porcaria e optei pelo salário da empresa, onde eu ganhava 400 mil réis mensais. A única coisa meio louca que fiz depois da guerra e que ao chegar, no dia seguinte, pedi demissão da Minas Brasil. Eles pelejaram para que eu desistisse da demissão, mas não voltei atrás. Até hoje não sei o que deu em mim. Entrei na empresa no início. Se tivesse ficado chegaria a diretor.
Cezar Santos — Mas o sr. foi fazer o quê?
Nada, não fui fazer nada.
Cezar Santos — Mas vocês tinham um vencimento como pracinhas?
Nada, naquela época nada.
Cezar Santos — Quando o sr. passou a receber algum dinheiro como ex-combatente?
Faz pouco tempo, há uns 15 ou 20 anos. Todo soldado passou a segundo-tenente, e aí passei a receber o soldo equivalente. Recebo hoje a reforma de segundo-tenente, mas se eu dependesse só dela estaria frito (risos...).
Irapuan Costa Junior — O sr. não quis ir para o Fisco. Quando eu fui governador, nomeei todos os pracinhas para o Fisco.
Eu me lembro. Na época eu tinha feito concurso para assistente sindical no Ministério do Trabalho, que era equivalente a inspetor do trabalho. E depois fiz concurso para agente fiscal do imposto de consumo, que hoje é auditor da Receita Federal. Nesse cargo eu me aposentei e é essa aposentadoria que mantém minha troupe.
Cezar Santos — O sr. gosta de ler esses livros sobre a Segunda Guerra? Qual o sr. acha melhor?
Tenho várias obras sobre a guerra. Não classifico uma ou outra como melhor ou pior. Tem uma que me comove, que faz o relato dos que morreram, chama-se "Eles não voltaram" (de Jamil Amiden, 320 pags., Ed. Riachuelo, 1960). Tem a relação deles e vários eu conheci. Ta lá na minha estante.
Cezar Santos — O sr. voltou à Itália depois da guerra?
Duas vezes, estive em alguns lugares onde lutamos. Onde eu queria ir mesmo eu não fui, algumas regiões... minha memória está falhando demais... Queria ter ido especialmente ao sul. No norte estive em Piacenza, algumas cidades por perto, como Parma e outras. A Itália é uma terra muito bonita, sem dúvida nenhuma.
Irapuan Costa Junior — O dia em que terminou a guerra, vocês estavam onde? Fizeram festa?
No dia 8 de maio de 1945 estávamos em... acho que estávamos em Piacenza. Recebemos a notícia meio duvidosa, ficávamos sem saber ao certo se tinha acabado a guerra ou não. Até que se confirmou, foram uns dois ou três dias.
Cezar Santos — O sr. ficou sabendo que meses depois, os alemães ainda abateram um navio brasileiro, o Bahia, matando vários brasileiros?
Depois do armistício? Lembro de ver vários navios afundados, mas não me lembro disso. Na época, a quinta coluna quis espalhar a notícia de que os navios estavam sendo afundados pelos americanos, botando culpa nos alemães, para o Brasil se posicionar contra a Alemanha. O que era uma bobagem.
Irapuan Costa Junior — O sr. trouxe alguma lembrança da guerra, algum souvenir tomado dos alemães?
Eu tinha, mas me desfiz lá mesmo. Era algo de que nem me lembro mais. Mesmo porque o comando anunciou que seria feita a revista no embarque na volta, e que se alguém fosse encontrado com algum armamento alemão capturado em combate, ficaria mais seis meses para receber baixa. Mas imagine, 6 mil homens, claro que eles não iriam abrir o saco de bagagem para fazer essa revista. Demoraria um ano. E não foi feito mesmo. Todos pensaram que seria feita, mas não foi. Eu tinha uma pistola Mauser alemã, mas com medo dessa revista, deixei ela no alojamento. Tinha um cômodo cheio de coisas e joguei a Mauser lá em cima.
Cezar Santos — O senso comum diz que guerra é sempre algo terrível. Mas ficou algo de bom para o sr. passar por essa experiência?
Posso dizer que, ao contrário de muitos que conheci, que sofreram depois as consequências de ter ido à guerra, eu nada sofri. Aí já me considero um privilegiado. Fui convocado como todos os nascidos em 21, e cumpri minha obrigação.
Irapuan Costa Junior — O sr. é da opinião de que a Segunda Guerra democratizou o Brasil? Serviu para derrubar Vargas?
Sem dúvida nenhuma. A nossa democratização foi acelerada pela Segunda Guerra. A guerra teve pelo menos esse caráter positivo para nossa realidade.
Fonte:
Foto: Fernando Leite/
Jornal Opção
Entrevista: Irapuan Costa Junior e Cezar Santos. 

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