O relato do piloto Tenente Rui Moreira Lima de uma das suas missões de ataque na área de Casarsa durante a Segunda Guerra :
No dia 11 de março de 1945, decolaram duas esquadrilhas do 1º Grupo de Caça sob o comando do Capitão Lagares, com a finalidade de bombardear a muito conhecida ponte de Casarsa, localizada ao norte de Veneza. Completava eu a 59ª missão de guerra. A ponte era conhecida por motivos óbvios. Ali, alguns companheiros trouxeram a marca da acurada artilharia alemã. Um deles, o Ten Armando de Souza Coelho, teve seu avião atingido, saltando de pára-quedas em território amigo. O Ten Othon Correia Neto, que não teve a sorte do Armando, saltou sobre a área de Casarsa, sendo feito prisioneiro. Eu mesmo já havia recebido meu quinhão, quando o meu P-47 foi atingido na asa, por estilhaços de 88. A verdade é que esse não era o lugar mais aprazível para ser "visitado". Quando nos designavam para ir até lá, não havia entusiasmo de nossa parte. Casarsa soava, para nós pilotos, como Bolonha, Ferrara, Legnago, Udine, Lavis, Piacenza, Isola di Scala e mais uma dezena de bem defendidos alvos do Vale do Pó. Lançar bombas em alvos como esses, se bem que fôssemos voluntários - o 1º Grupo era constituído somente de voluntários - causava-nos profundo respeito.
Decolaram as esquadrilhas Verde e Marrom. Na primeira, comandada pelo Cap Lagares, voavam o Ten Tormin, como nº 2, eu como líder de elemento, e o Ten Coelho como nº 4; a Marrom, também sob o comando de Lagares, formada pelo Cap Pessoa Ramos, o Ten Meira como nº 2, o Ten Perdigão como líder de elemento e o Ten Paulo Costa como nº 4. Todos veteranos. O menos experiente era o Tormin, mas que se tornou veterano nas suas primeiras missões, conquistando este título por bravura, precisão nos ataques, descontração no vôo sob o fogo antiaéreo e mais um punhado de qualidades que o tornaram um dos mais hábeis pilotos de caça de nossa Unidade.
A rota escolhida até o alvo saiu da rotina, pois ao invés de voarmos diretamente para o objetivo, o Lagares, para evitar o Flak de Bolonha, voou sobre nossas linhas até Florença, rumando daí para Casarsa. Nessa ocasião, parte da "Estrada 9" tinha caído nas mãos do VIII Exército Inglês. Ao cruzá-la, deixamos à nossa esquerda a cidade de Forli, recentemente conquistada pelos ingleses, estando ocupada por um esquadrão de aviões de ataque A-20, formada de poloneses da RAF. Para esta história, este detalhe é importante.
Chegamos a Casarsa na hora estabelecida, e iniciamos o ataque. Era uma ponte ferroviária sobre o rio Madunna, que só poderia ser considerado como tal na época das águas. Parecia um desses nossos rios do nordeste que, na seca, vira estrada.
Mergulharam o Lagares e o garoto Tormin, vindo eu em seguida. No momento em que iniciava o mergulho, descobri uma bateria de 88 alemã, localizada a uns 200 metros da ponte. Avisei pelo rádio: - "Jambock Verde, de Jambock Verde, nº 3, localizei uma bateria, vou atacá-la, antes de lançar minhas bombas". - "Boa sorte", replicou o Lagares.
Como era de esperar, fui recebido "festivamente", não somente pela bateria que estava atacando, mas por outras armas de menor calibre, inclusive canhões antiaéreos de 40 e 20 mm. Deixei tudo em volta e me fixei na bateria. Mais ou menos a uns 3000 pés, fui atingido no motor, perdendo dois cilindros. O motor começou a pegar fogo. Novo aviso ao Lagares: - "Jambock Verde, fui atingido, o avião está pegando fogo, vou continuar o ataque sobre a bateria, saltando de pára-quedas em seguida". Sem aguardar a resposta, desci mais sobre o alvo, que somente parou de atirar quando o seu último artilheiro foi eliminado. Honra à memória daqueles bravos alemães. Tudo isso correu no relógio em segundos. A velocidade de mergulho andava pelas 420 mph. Transmiti nova mensagem: - "Jambock Verde, estou com fogo a bordo, vou agora lançar minhas bombas sobre a ponte, 'entregando-as a domicílio', e depois saltarei".
Por sorte, no momento em que sobrevoávamos o alvo, estava parado sobre a ponte um trem alemão. As bombas dos setes aviões que me antecederam pegaram a aérea do alvo, mas não atingiram a ponte. Como fui fazer aquelas entregas, acertei em cheio. O trem era de munições. Uma festa pirotécnica. A explosão das duas bombas de 500 lbs do meu D-4, "o Poderoso" (eram esses o número e o nome do meu Thunderbolt), misturou-se à explosão da munição do trem.
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O dia 22 de abril de 1945 é uma data emblemática para a Força Aérea Brasileira, pois marcou o ápice da campanha do 1º Grupo de Aviação de Caça no Teatro de Operações europeu. |
Como ataquei a baixa altitude, fui atingido pelos estilhaços. Trouxe mais de 28 marcas no avião, sendo que em duas delas poderia passar uma bola de futebol de salão.
Cumprida a missão, com a ponte destruída, transmiti nova mensagem: - "Jambock Verde, é o Jambock Verde 3, vou saltar, a visibilidade é zero, pois, além do fogo, há óleo sobre o pára-brisa, cobrindo também o canopy e fumaça na nacele". Com o excesso de velocidade, levantei o nariz do avião, atingindo a altura de 8000 pés. Agora, só saltar e esperar o bicho que ia dar.
Nesse instante, ouvi a voz clara do Lagares: - "Não vai saltar coisa nenhuma, o fogo antiaéreo te pegará durante a queda, toma o rumo 150º que te avisarei quando deves saltar". - "E o fogo? Achas que devo virar churrasco ou explodir feito o trem lá embaixo?" - "É uma ordem, não salta agora, há Flak demais em torno do teu avião, estão te caçando, é burrice saltar agora". Outras vozes chegaram aos meus ouvidos. O estribilho era o mesmo, - "Não salta Arataca!" A solidariedade dos companheiros e a voz experiente do Lagares clarearam minha cabeça. - "Está bem, Jambock Verde, leva-me para outro local, que o canopy está começando a fundir, e eu estou vendo a hora de dar o último grito".
Voei na reta, sempre subindo, seguindo as instruções do Lagares. Não se via nada para o exterior. A labareda que vinha do motor lambia o lado esquerdo do canopy. O óleo, a fumaça tudo impedia que eu visse o azul lá fora. O vôo era por instrumentos, coisa que, na época, não era meu forte.
- "Agora salta, estás sobre o Adriático. Já pedi socorro. Dentro de duas horas terás um Catalina que te apanhará. Usa bem a cabeça e teu barco de emergência."
Acontece que, naquele instante, meu ímpeto de saltar já estava bem arrefecido. Afinal de contas, não era pára-quedista. Iria tentar um meio de apagar o fogo. Avisei, caprichando no timbre de voz, dando a impressão de que estava calmo de que não iria saltar enquanto não tentasse uma manobra para apagar o fogo. Minha decisão caiu como uma bomba sobre o pessoal. Entre as palavras que me chegavam aos ouvidos, quase todos me chamavam de burro, xingavam minha mãe, diziam que eu iria virar churrasco, que eu estava era com medo de saltar, etc. Ouvi o diabo, mas não dei bola. Aproveitei um intervalo e entrei no ar declarando: - "Estou a 12000 pés, vou cortar a gasolina, mistura, bateria, gerador e magnetos. Picarei em seguida até atingir 350 mph. O fogo deve apagar. Darei partida no motor outra vez, se o fogo voltar, saltarei. Caso contrário voarei até onde der". Pararam de falar, naturalmente para observar-me. Executei a manobra planejada, a labareda extinguiu-se. Ao dar nova partida, ela não voltou. Aumentou a fumaça, talvez por ter aumentado o vazamento de óleo.
Com o fogo apagado, o Lagares deu-me o rumo direto de Forli, a tal base de poloneses da RAF. Atendendo ao comando do Lagares, fui guiado até lá. Quando estava mais ou menos a um minuto da cabeceira da pista, em altura conveniente, o Lagares disse-me que estava alinhado com a pista, devendo cortar o motor à sua ordem.
Aí entrou São Tomé. Quis conferir. Pus o óculos de vôo, abri o canopy e estiquei o pescoço para fora. Um jato quente de óleo cobriu-me os óculos. Num gesto pouco inteligente, tirei os óculos e insisti. Desta vez paguei caro. A vista esquerda foi atingida com óleo quente. Já estava quase no chão. A ordem para cortar o motor veio rápida. Fazê-lo e deslizar de barriga sobre a pista foi questão de um piscar de olhos. Fiz uma aterrissagem sem rodas, pois tanto eu quanto o Lagares não queríamos correr o risco de "varar" a pista com uma possível explosão. O avião correu o suficiente para parar a uns dez metros do seu final. Depois daquele barulho infernal da lataria deslizando sobre uma pista de emergência feita de grades de ferro, e passado o susto momentâneo, chamei o Lagares, quase implorando que ele não me deixasse naquela base desconhecida, de aliados desconhecidos também, onde teria que me entender com poloneses falando inglês, língua cuja pronúncia arataca (sou nortista do Maranhão) não pegaria bem falando com gente da Polônia, que só conhecia através do rádio, quando Batatais engoliu 5 frangos e Leônidas e Hércules fizeram 6 gols em Majewski, no campeonato de futebol de 1938.
Meus apelos foram em vão. As esquadrilhas retornaram a Pisa. Fiquei entregue à minha própria sorte e sabedoria. Deixei o avião às carreiras. Ainda havia o perigo de uma explosão. Afastei-me o quanto pude. Sentei-me sobre o pára-quedas a uns 100 metros, tremendo, mas tremendo mesmo, a vista esquerda no escuro, aguardando o socorro de um carro contra-incêndio, uma ambulância e um jipão. Quem me descobriu primeiro foi o jipão. Sobre o capô vinha sentado um oficial da RAF. Louro, 1,88 m, uniforme bem posto, com algumas condecorações que, de longe, me perguntou: - "Brasileiro?" Como não imaginava que àquela altura dos acontecimentos fosse encontrar um inglês da RAF falando português, dei uma de inteligente e respondi: - "Yes". - "Yes, coisa alguma, seu sacana, como vão as mulheres de Copacabana? Que é que houve contigo?"
Caí das nuvens de alegria. Respondi-lhe com outra pergunta: - "E tu, que é que estás fazendo com esse uniforme da RAF?" - "Sou filho de inglês, nasci em Curitiba, e aqui estou nessa merda dessa guerra maluca". - "Mas por que estás aqui com os poloneses?"
Aí veio a explicação. Na véspera, dois aviões Focke Wulf-190 fizeram um ataque de surpresa, matando alguns tripulantes de A-20 que assistiam a um cinema ao ar livre. Por solicitação do comando polonês, a RAF mandou uma esquadrilha de Spitfires para fazer a defesa aérea de Forli. Comandando essa esquadrilha, veio o Frederick C. Tate, de Curitiba, Paraná, filho de inglês e tão louco quanto a guerra louca que já estava chegando ao fim.
O médico polonês que me atendeu foi gentilíssimo e eficiente. Ali mesmo fez a faxina no olho esquerdo. Com um chumaço de algodão embebido em líquido amarelo, limpou-me a vista. A impressão que tive é que ele usava um esfregão desses de encerar cerâmica S. Caetano. Doeu pra burro. Antes que eu visse qualquer coisa, pôs-me um tampão no olho esquerdo, ficando com aquela cara que tem hoje o Moshe Dayan.
Meu pensamento voava nesse momento para o Brasil. Pronto, acabou-se minha guerra e vou ter que voltar caolho. Que falta de sorte, de tantas me livrei nessa missão e agora fico cego pela metade. Fui interrompido pela voz amiga do Fredy, que me declarou estar tudo bem, inclusive com minha vista esquerda. Talvez passasse a um grau menor de visão, mas estava salva. Respirei, mas sem tranqüilidade. Somente no primeiro curativo, no dia seguinte, no Hospital Central de Livorno, é que tive a certeza que não estava cego.
Ainda foi o Frederick que me falou outra vez: - "Agora é que vai começar a tua guerra com esses poloneses. Toda a vez que alguém se safa de uma dessas como tu te safaste, é obrigado a tomar um pileque. E a bebida deles é vodka!"
Entramos no Jipão, passamos pelo centro médico de emergência, para uma limpeza corporal rápida (ficara todo sujo de óleo ao deixar o avião) e levaram-me para a cidade de Forli, onde estava localizado o cassino de oficiais dos poloneses. Lembro-me que encheram de vodka um copo próprio para uísque, que foi tomado de um só fôlego, ao som de uma bela canção guerreira polonesa. Nessa hora meu estado moral era o pior possível: dor de cabeça, a tremedeira que ainda não havia passado, um tampão no olho esquerdo, com todas as características que estava cego, aqueles alegres companheiros de língua diferente, um copo de vodka já bebido, que caiu garganta abaixo sem uma interrupção, não há dúvida que minha tábua de salvação ainda era o mesmo grande gozador Frederick Tate, o brasileiro rafeano que Deus mandou para me salvar.
Bebido o primeiro copo, encheram outro. Nova canção e pimba! Tive que tomá-lo. Não adiantaram meus rogos ao Fredy. O bandido estava ali para ver o circo pegar fogo. Não teve um gesto de pena. Lembro-me só o que me disse ao iniciar o segundo copo: -"Agora, meu velho, estás..."
Apaguei. Acordei no dia seguinte no Hospital Central de Livorno. Sofri uma coma alcoólica. Não morri por pura sorte.
Fonte deste artigo: Senta a Pua! - Rui Moreira Lima - Editora Itatiaia
Matéria do blog A vida no Front
Nota de pesar pelo falecimento do Brigadeiro Rui Moreira Lima
Faleceu na madrugada desta terça-feira (13), no Rio de Janeiro, o brigadeiro Rui Moreira Lima, aos 94 anos. Ele estava internado no Hospital Central da Aeronáutica, no Rio de Janeiro, há um mês e meio, em decorrência de complicações de um AVC sofrido este ano. Ele teve uma parada cardíaca às 4h 30. O corpo do militar será velado no Instituto Histórico da Aeronáutica, às 14h, e o enterro será às 16h, no Cemitério São João Batista.
Herói da Segunda Guerra Mundial, com 94 missões na Europa,Moreira Lima era coronel quando foi demitido, em 2 de abril de 1964, do comando da Base Aérea de Santa Cruz, e preso por ser contra o golpe militar.
O crime de Rui Moreira Lima foi resistir ao golpe. Depois disso, Rui passou a ser um militante pela Anistia aos militares perseguidos e escreveu o best-seller "Senta a Pua!", sobre os integrantes da FAB que participaram da Segunda Guerra Mundial.