CHICO PARAIBA
-Tenente  Ithamar! A Policia do Exército americana veio aqui e prendeu o Chico  Paraíba. Dizem que vai ser julgado pela corte marcial. 
Quem  falava era o sargento Arlindo, encarregado do alojamento de uma  companhia do 11º Batalhão de Infantaria de Montanha, da FEB-Força  Expedicionária Brasileira. Estavam próximos à cordilheira dos Apeninos, e  era o inverno italiano, no começo de 1945. O Tenente Ithamar, com seu  grupo de reconhecimento, estava chegando de uma missão noturna junto às  linhas alemãs. Não tinham havido baixas, felizmente. Mas nem por isso o  humor do tenente era dos melhores. Para a perigosa missão, em terreno  desconhecido, e à noite, só contava com um guia italiano, em quem,  aliás, não confiara muito, desde o início. Soldados em combate  desenvolvem um sexto sentido, e o seu não falhara. O italiano era um  covarde, que os abandonara na escuridão de uma encosta, em meios a  restos de neve, quando uma sentinela alemã, percebendo os ruídos do  grupo, rolara uma granada morro abaixo. Que felizmente não explodira  muito perto. Escafedera-se o carcamano, e os brasileiros não mais  haveriam de ouvir falar nele. Também pudera... Se o encontrassem depois  daquilo, iriam moê-lo de pancada, no mínimo. O tenente, quando pensava  nele, praguejava entre dentes. Sem orientação, tivera que arriscar uma  retirada que só era segura morro abaixo. No sopé, sem direção, poderia  cair numa trincheira inimiga e seria um desastre. O jeito fora esperar o  inicio da manhã e se guiar, mal e mal, pela bússola. Foi o que fez, e  conseguiram retornar, embora os alemães, como todos os combatentes  veteranos, tendo desenvolvido uma visão mais acurada, os tivessem  percebido, e enviado algumas rajadas de metralhadora, quando se  deslocavam. Mas nessa altura já estavam fora de alcance. Era, pois, um  tenente Ithamar tenso, sujo, com frio, fome e cansaço quem recebia a má  notícia. 
- O que o Chico fez para ser preso?
- Disse que  estava cansado dessa ração americana e queria fazer uma sopa. Deu um  tiro de fuzil numa galinha e fez a sopa. O italiano dono da galinha foi  no quartel dos americanos e deu queixa. Eles vieram aqui e levaram o  Chico. Tentei discutir com eles, mas não adiantou. Disseram que é crime e  está previsto nos regulamentos. 
- Mas também está nos regulamentos que quem julga nossos soldados somos nós mesmos. Você não disse isso a eles?
-Sim, disse, mas não quiseram ouvir. Eu não sabia o que fazer, eram muitos. Achei melhor esperar o Sr. chegar. 
-Você, Arlindo, que fala inglês, venha comigo. Chame o Gaúcho, e pegue o jipe.
-Vamos só nós? 
-Não é preciso mais ninguém.
- Vamos desarmados?
-Não, armamento completo.
No  trajeto, Ithamar, também paraibano,  ia pensando no seu subordinado e  conterrâneo. Chico era um cidadão muito popular na tropa. Sem muita  instrução, era, contudo um ás na musica nordestina, cantor, tocador de  sanfona, dançarino, contador de causos e piadas. Seu sotaque carregado  ajudava. Desinibido e folgazão. Sei que conhecem o tipo. Faz sucesso  também em política. Chico era, além disso, bom soldado. Fazia-se  respeitar no momento do combate. 
-Arlindo, por que você não impediu o Chico de fazer essa besteira? Perguntou Ithamar.
-Quando  vi, já tinha feito. Disse a ele que ia ter problema, mas ele disse que  estávamos numa guerra de matar homens, e que problema ia ter matar uma  galinha? 
-Bem próprio da simplicidade do Chico, pensou Ithamar, quando já estavam chegando no quartel americano.
- Arlindo, quero que você traduza exatamente o que eu disser, seja lá o que for. Entendido?
- Entendido, meu tenente.
O  sentinela americano relutou em levar até o oficial de dia aquele  tenente com o fardamento sujo e seus dois acompanhantes, mas não podia  fazer diferente.
Foram recebidos por um capitão americano com  quase dois metros de altura, bem fardado, saudável, acompanhado de  quatro outros yanques, que os olhou com certo enfado.
- Diga a  ele que lamento aqui comparecer sem estar devidamente fardado, mas que  acabo de chegar de missão recebida do comando conjunto e não tive tempo  de me trocar. Arlindo traduziu, e o capitão mudou um pouco sua postura,  ao notar o olhar cansado do tenente.
- Ele pergunta em que pode ajudar, meu tenente.
-  Venho buscar um soldado meu comandado, indevidamente preso pela Policia  do Exercito americana, que segundo ela, cometeu transcrição  disciplinar, e a parte correspondente, para que possamos julgá-lo e  puni-lo, se for o caso, em corte brasileira, como manda o regulamento. 
-  Ele diz que o soldado preso já tem processo em andamento, e pode ser  julgado pelos americanos, pois o chefe do comando conjunto é americano.  Assim, não pode entregá-lo.  -traduziu Arlindo a resposta.
- Diga  a ele que não sairemos daqui sem meu soldado, pois não aceito a  interpretação dele e sou inteiramente responsável por cada um dos meus.
O americano ouviu, esboçou um sorriso, olhou para os outros americanos e perguntou, logo traduzido por Arlindo:
- Só vocês três? E como vocês pensam em levá-lo?
-  Arlindo, traduza exatamente, repetiu Ithamar: Eu não disse que iremos  levá-lo. Disse que não sairemos daqui sem ele. Isso significa que, se  preciso for, combateremos para levá-lo, embora sejamos minoria e  provavelmente morramos aqui.
- O americano ouvia com espanto  crescente a tradução. Já se preparava para o pior, quando olhou bem no  fundo dos olhos do atarracado tenente brasileiro. O que viu lá não foi  do seu agrado. Também não foi o que não viu. Não viu medo. Não viu raiva  nem hesitação. Viu uma calma determinação que não deixava margem a  dúvidas. Viu que a afirmação que ouvira com espanto era a pura expressão  da verdade. Prova é que o tenente estava aferrado à sua Thompson, e por  certo faria um estrago antes de morrer, se um tiroteio começasse ali. E  ele estava diretamente na frente, enquadrado na linha de tiro. Ou então  – quem sabe? – sentiu admiração por aquele tenente exausto, que como  ele, lutava longe de casa pela liberdade, e não abandonava um dos seus  nas mãos de estrangeiros, ainda que aliados. 
O silêncio era gritante. Dizia muitas coisas. Mas não durou muito, embora parecesse não acabar mais. Um minuto? Menos. 
O americano virou-se para um subordinado: - Busque aquele caipira e entregue a eles!
Ninguém falou mais nada. Nem quando Chico Paraíba, risonho, sem saber da tragédia que quase tinha provocado, entrou na sala.  
Ithamar  fez a continência de praxe, voltou-se e saiu, com seus soldados e um  Chico já tagarelando de alegria. Ouviu o americano falar algo para seus  companheiros. Mas nem perguntou a Arlindo o que era. Já não interessava  mais. Se tivesse pedido a tradução, seria: “Esses brasileiros são  loucos. Morreram às dúzias para tomar o Monte Castelo. Verdadeiros  suicidas.”
(Essa crônica é uma  homenagem a Ithamar Viana da Silva, que recebeu várias condecorações  por bravura na Itália. Na volta da guerra, fez o curso de engenheiro no  IME- Instituto Militar de Engenharia. Reformou-se como coronel, casou-se  com uma goiana e aqui constituiu família. Foi professor universitário  em Brasília e ocupou, com dedicação e honestidade exemplares, vários  cargos públicos em Goiás. Faleceu em 1999).
Fonte:Jornal Diaário da Manhã de Goiânia 

Olá.
ResponderExcluirMuito bom! bela postagem, parabéns.
Que Deus possa te abençoar cada vez mais.
Parabéns pela postagem!!! isto é história bruta do nosso país que muitos não sabem....
ResponderExcluirObrigado Salviano e Rodrigo pela visita.
ResponderExcluirAgradeço e o mais importante e que gostaram.
Voltem sempre
Abraço
Henrique