Uma lição de História e coragem
A professora Virgínia Leite se voluntariou para ajudar os pracinhas na Itália durante a Segunda Grande Guerra.
Dona  Virgínia no traje de gala de  enfermeira da FEB. No hospital em que trabalhou na Itália nenhum, nenhum soldado morreu. As enfermeiras eram tidas  como 'milagrosas' e faziam a  alegria dos soldados que não viam a  família e não ouviam uma voz  feminina falar a língua portuguesa há  muito tempo.
Aos 92 anos, Dona Virgínia ainda se recorda de alguns fatos vividos naqueles anos de 1944 e 1945. Ela guarda medalhas e souvenirs sobre o assunto, mas chora ao lembrar dos feridos de guerra
A Segunda Guerra Mundial, que começou em 1939 quando a Alemanha   atacou a Polônia, sob as ordens de Adolf Hitler, só teve a   participação do Brasil depois que submarinos alemães começaram a   torpedear embarcações brasileiras no Oceano Atlântico em fevereiro de   1942. Até então, Getúlio Vargas afirmava que "era mais fácil uma cobra   fumar do que o Brasil entrar na guerra". Por inúmeros motivos, a   concepção do presidente sobre o conflito mudou os brasileiros   experimentaram o drama de estarem envolvidos em uma guerra e a população   ficou dividida entre os que teriam de viajar para a Itália e aqueles   que ficariam esperando seus entes queridos voltarem. A FEB (Força   Expedicionária Brasileira), pelo menos, ganhou um lema: 'A cobra vai   fumar'. 
Em agosto do mesmo ano, o Brasil resolveu romper relações  com o  país germânico e declarou guerra às nações do Eixo (Japão,  Alemanha e  Itália), se colocando ao lado dos Aliados sob a liderança  dos Estados  Unidos.  
Entre setembro de 1944 e maio de 1945, mais  de 25 mil soldados e  oficiais da FEB combateram na Itália. Mas não só  eles estiveram  presentes. Também foram para aquele país 73 enfermeiras,  todas  voluntárias, para ajudar a cuidar dos brasileiros feridos em  combate.  Entre elas estava uma paranaense de Irati, Dona Virgínia  Leite. A  professora, com então 29 anos, se comoveu com a ida dos  'patrícios' para  a frente de batalha, decidiu fazer um curso de  enfermagem dado pela  Cruz Vermelha e ir para o meio da guerra. Ficou  oito meses no país,  voltou com depressão e recebeu várias medalhas, até  se estabelecer em  Curitiba. 
Passados mais de 60 anos desde o  fim dos combates, Dona Virgínia,  hoje com 92 anos, ainda guarda com  carinho recordações daquele tempo.  Entre fotos e medalhas até sorrisos e  lágrimas, ela relembra o tempo em que  viu de perto o horror de uma  guerra e também a sensação de ajudar seus  compatriotas.
  
Em  meio a choro e risadas, dona Virgínia, cujas roupas e  utensílios usados  durante a Guerra estão expostos em uma sala exclusiva  no Museu do  Expedicionário de Curitiba, conta um pouco sobre seu  trabalho, sua vida  e suas impressões na Itália da Segunda Guerra  Mundial. 
Comunicação: A senhora era professora. Por que resolveu virar enfermeira? 
Dona Virgínia:  Naquela época não havia televisão, mas a  gente escutava notícias no  rádio e lia nos jornais o que acontecia na  guerra. Com a ida dos  pracinhas, eu resolvi ser útil e fazer o bem. 
Comunicação: Como sua família reagiu à sua ida à Itália? Apoiaram, tiveram medo, combateram a idéia? 
Dona Virgínia:  Eles acharam natural, porque eu conversei e  expliquei o motivo. Nossos  soldados ainda estavam sendo preparados para  a Guerra. Naquela época,  inclusive as armas que o Brasil usava eram  francesas. Chegando lá, a  América do Norte tinha todo seu armamento  diferente do que era usado na  França e conseqüentemente, no Brasil, então o soldado se preparou lá  para usar as armas.( Dona Virgínia se referia ao fato de que os soldados brasileiros eram pouco preparados para a Guerra e conseqüentemente era preciso que tivessem ajuda das enfermeiras caso sofressem algum acidente grave).
Comunicação:  Como era a rotina no hospital? O que a senhora  fazia nas horas vagas?  Escrevia, ia à cidade, a alguma festa  improvisada? 
Dona Virgínia:  Nas horas vagas, eu inicialmente não tinha  coragem de sair da zona  hospitalar porque eu pensava: "Meu Deus, como é  que vou me distrair  enquanto os soldados, coitadinhos, estão sentindo  dores?".  
Até  que um dia meu chefe de enfermaria soube disso e me falou:  "Você sabe  que tem colega sua que já voltou, porque não agüentou a  guerra, não é? E  você está na listagem" – ele disse isso porque,  lamentavelmente, nós  tivemos casos de colegas enfermeiras que não  aguentaram; entraram em  depressão e precisaram voltar para o Brasil. E perguntei por qual  motivo estava na listagem, afinal, estava  trabalhando normalmente e ele  disse que eu trabalhava bem, mas não saía,  e que todos nós  precisávamos ter uma válvula de escape. E eu chorei,  para variar. Aí  ele disse que estava indo a um clube e me chamou para ir  junto.Eu  perguntei se dava tempo, porque estava saindo do trabalho e  o local era  longe. Então tomei um banho rápido, me vesti e fui com ele  ao clube. A  partir disso, eu comecei a sair. Ele ainda me disse: "Você  não pode,  de maneira alguma, ficar fechada na zona hospitalar. Isso que  você está  fazendo é absurdo".  
E nessa hora de folga, nós tínhamos que  pedir licença, porque não  era permitido voltar para o hospital. Os  americanos diziam que hora de  folga era para ser cumprida, que era  necessário ter esse controle,então, eu passei a sair e era o que  todos faziam. Além do clube nós  tínhamos cinema, teatro, tudo para nos  distrair. 
Comunicação: E como era a rotina das enfermeiras fora dali, havia racionamento de comida, energia? 
Dona Virgínia:  O americano usa e abusa do direito de  organização. Alimentação,  medicamentos e combustíveis para a condução  pareciam vir de um vulcão,  era uma coisa impressionante. O americano vai  para a guerra com toda a  regalia de uma família rica, então, em relação  a isso, não faltou  absolutamente nada.  
Comunicação: Como era a relação com as outras enfermeiras brasileiras? Havia enfermeiras estrangeiras também? 
Dona Virgínia:  Embora tenha vindo do interior, eu nunca  tive problemas de  relacionamento com elas. Só havia mais duas  enfermeiras que não eram de  Curitiba, mas vieram para cá quando eram  crianças. Inclusive eu já  conhecia algumas. Uma delas tinha sido  professora em Irati cidade que eu morava.Eu também exercia essa  profissão. E o interessante é  que eu era professora no grupo escolar  Duque de Caxias – patrono do  exército! 
O Brasil não tinha hospital lá na guerra. Era uma seção   hospitalar dentro do hospital americano. Então, naturalmente havia   enfermeiras americanas. E uma coisa: para ver nossa falha, entre as   americanas já havia tanto as oficiais quanto as praças, mas essas não   trabalhavam como enfermeiras. E quando as enfermeiras brasileiras   chegaram, ficaram deslocadas porque não eram oficiais nem praças.  
O  Exército brasileiro não estava realmente preparado. Tanto não  estava,  que não havia um número suficiente de enfermeiras para organizar o   corpo feminino, principalmente porque poucas enfermeiras tinham escola   de alto padrão, que tiveram o curso de enfermagem da Cruz Vermelha. E a   Cruz Vermelha, sendo uma organização internacional, que faz tudo o que o   mundo precisa, teve esse cuidado de organizar. No Brasil, houve isso  em  muitos municípios, inclusive Irati, e a parte de escrita acontecia  no  curso em que eu era professora. Diversos colegas também se  inscreveram  e, havendo comentários sobre a guerra, todos queriam vir  para Curitiba,  para fazer estágio. Quando me perguntaram se eu queria  vir fazer  estágio, aceitei na hora, embora nenhuma outra colega tivesse  aceitado.  
Comunicação: A senhora ainda tem contato com elas? 
Dona Virgínia:  Nós mantemos contato até hoje. Se bem que,  do Paraná, foram oito  enfermeiras e dessas oito, lamentavelmente as  outras sete já faleceram.  A última que faleceu sofria de asma e tinha  ido morar no Rio de  Janeiro havia mais de 20 anos. Então, há muitos anos  que estou só, aqui  em Curitiba. E, bem, eu saí de Irati e fui para a  Itália. Voltei de lá  para Irati e vim para Curitiba porque estava  fazendo tratamento após a  guerra - sofri uma queda, tive uma fratura de  coluna e fui reformada  antes do aproveitamento no Exército das  enfermeiras brasileiras. O  número de enfermeiras do Brasil era 73. Eram  67 do Exército e seis do  primeiro grupo de caça, ou seja, da  Aeronáutica.  
Comunicação:  Como era a relação dos soldados e enfermeiros da  FEB com população  local? O povo apoiava Mussolini ou se solidarizava com  os brasileiros e  os Aliados? 
Dona Virgínia: O italiano logo percebeu a  afinidade e a  maneira diferente que havia entre os soldados  brasileiros e os outros  soldados porque os alemães segundo os  italianos contavam, os  massacraram. E quando os alemães iam embora,  carregavam o que podiam… O  que não podiam eles queimavam. Aí os  brasileiros chegaram, e brasileiro é  um povo com coração aberto…,
mas  os italianos tinham muito medo dos soldados negros. Segundo  eles, os  alemães disseram que os brasileiros negros comiam crianças.  Então,  quando eles viam soldados negros, ficavam apavorados, mesmo sendo   criaturas boníssimas. Quando nos aproximávamos de alguma casa, as   crianças sempre pediam chocolate, pão, qualquer coisa que pudessem dar,   porque eles sofriam de uma miséria tremenda. No começo elas ficavam com   medo quando os negros davam algo, mas depois não. Tanto é que eram   recebidos com festa e, quando a guerra terminou, foi algo que nem sei   como descrever.  
Comunicação: A senhora se alistou  voluntariamente ou foi  convocada? O que sentiu naquele momento? Quando a  senhora chegou à  cidade italiana de Nápoles, o que se passou pela sua  cabeça? 
Dona Virgínia: Todas as enfermeiras foram  voluntárias. Eu  senti muita ansiedade, mas meu objetivo foi ser útil e  fazer algo de bom  naquele momento. Uma das coisas que para mim foi  muito recompensadora  foi quando eu cheguei à Itália. Em um dos  primeiros dias de trabalho,  quando eu estava saindo da enfermaria, um  ferido me chamou, eu voltei  para o lado da cama e ele agarrou e beijou  minha mão. Eu falei: "O que é  isso, criatura?!" e fechei a cara. Ele  disse: "a senhora não pode  imaginar o que é escutar uma voz feminina de  nosso país nos atendendo,  porque as americanas são boas, mas elas não  nos entendem”. Isso foi o  suficiente para que eu me sentisse  recompensada pelo trabalho que estava  fazendo. 
Nós pisamos  exatamente em Nápoles, que estava completamente  destruída, então eu  fiquei apavorada. E acredito que, assim como eu, as  outras enfermeiras e  os próprios pracinhas devem ter se assustado, mas  em nenhum momento eu  quis voltar. Eu tinha assumido esse compromisso e  tinha que ir até o  fim. Porque, embora eu tenha sofrido esse problema,  depois caí na  realidade, voltei a pisar no chão e foi tudo normal.  
Comunicação: A senhora mantinha contato com a família? 
Dona Virgínia: O contato era deficiente. Nossas famílias, inclusive, só ficavam sabendo do que estava acontecendo muito tempo depois. 
Comunicação: O exército inimigo respeitava a condição dos feridos, e os hospitais? 
Dona Virgínia:  Há uma lei internacional que diz que o  inimigo é proibido de destruir  hospitais e barracas de atendimento dos  soldados. Naturalmente havia o  medo da nossa parte, mas na Europa isso  foi respeitado. O que não  aconteceu, por exemplo, no Pacífico, porque os  japoneses bombardeavam  hospitais, navios-hospitais. Às vezes passava um  avião e todos ficavam  apavorados, mas ele passava por cima do hospital e  ia soltar as bombas  lá na frente.  
Comunicação: Como foi o momento em que a senhora descobriu que a guerra tinha acabado? Como a senhora reagiu? 
Dona Virgínia:  Nós estávamos no hospital. E lá, por duas  vezes, vieram notícias  falsas sobre o fim da guerra. Então vinha a  notícia, nós ficávamos  contentes. Mas de repente não era verdade e nós  ficávamos tristes,  lógico. E quando veio a notícia verdadeira foi um  Carnaval.  
Comunicação: Como foi a volta para o Brasil? 
Dona Virgínia: Foi um sentimento de muita alegria. Ninguém faz idéia do que é uma guerra sem ter passado por ela. 
Comunicação: Depois que a senhora voltou, como foi a readaptação? A partir daí, o que a senhora fez? 
Dona Virgínia:  Eu me readaptei bem, porque era professora e  voltei a exercer a  profissão. Mas logo que voltei, tive uma depressão  muito grande e  quando estava fazendo tratamento, caí, tive fratura de  coluna e fui  reformada.  
Comunicação: A senhora teve depressão depois de voltar da guerra? 
Dona Virgínia:  Não me lembro muito bem quanto tempo durou…  Depois eu me machuquei e  naquela época a medicina estava muito aquém da  de hoje – faz mais de 50  anos –, eu fiquei nove meses no hospital.  Atualmente eles nem fazem  mais gesso! Aí fui reformada e fiquei muito  tempo me recuperando. Eu  precisei usar muletas, se não me engano, por 16  ou 17 anos, e colete  ortopédico nem sei por quanto tempo. Eu tive uma  vida muito sofrida  depois dessa queda.  
Comunicação: Ao  acompanhar as notícias de hoje sobre guerras  que acontecem em algumas  regiões do mundo, a senhora sempre compara com  aquela que presenciou? 
Dona Virgínia:  Eu espero que não venha a acontecer a  Terceira Guerra Mundial, mas as  guerras de hoje são muito diferentes. Há  gases, coisas desse tipo.  Porque assim como a medicina evoluiu,  lamentavelmente, os armamentos  também.   
Comunicação: Como é, para a senhora, ser uma figura tão importante para o Brasil, receber tantas homenagens? 
Dona Virgínia:  Eu não me considero uma pessoa importante.  Porque tudo que recebi,  todas as vezes – e não foram poucas – em que  recebi algo, eu sempre  disse uma coisa: "Isso quem deveria receber eram  os pracinhas que  estiveram na frente de batalha, matando para não  morrer, para ter essa  liberdade relativa, que existe no mundo, inclusive  no Brasil".
Reportagem Franciele Bueno, especial para o Comunicação On-line
Edição Vanessa Prateano

























